Por Daniel Sottomaior 28/2/2011 - 16:59
Em 2008, a iniciativa Brasil para Todos, que luta pela remoção de símbolos religiosos de repartições públicas, aliou-se à APOGLBT na promoção do tema daquele ano, que incluía o slogan "por um Estado laico de fato". Desde então, venho acompanhando outras iniciativas da comunidade LGBT, cujas organizações têm se firmado entre as vozes mais ativas na promoção da laicidade do Estado no cenário nacional.
Por isso causou estranheza o tema da Parada deste ano, que pede o fim da homofobia com a frase "amai-vos uns aos outros". Em artigo àCapa, Dario Neto aponta muito corretamente que essa escolha não viola a laicidade do Estado (pelo simples fato de que a APOGLBT não faz parte do Estado), e que a mensagem da Parada não é exclusivamente cristã. Quem afirmou em contrário equivocou-se. Mas entendo que há outras críticas importantes ao tema da Parada.
Para começar: alguém acha realmente que amor é coisa passível de recomendação? Por mais bem intencionado que seja o conselho, em alguma época ou lugar ele surtiu algum efeito? Ainda que a resposta fosse afirmativa, vamos agora legislar sobre os sentimentos? "Amai-vos uns aos outros" talvez faça efeito entre anjos e outros seres diáfanos e celestiais, mas aqui entre os mortais, parece apenas mostrar desconhecimento da natureza humana. Amar dezenas de pessoas já parece uma tarefa além das possibilidades humanas; amar milhões de desconhecidos é uma ideia de conto de fadas que não deveria ter lugar no chamado de uma importante organização social.
Amar a todos pode até ser um ideal cristão ou religioso, mas não é um ideal republicano. Esse é talvez o cerne da confusão da Parada. Buscar amor é um objetivo não apenas inalcançável, mas que nada tem a ver com o papel da APOGLBT, ou de qualquer outro grupo de defesa de direitos humanos. Essas instituições existem para exigir o reconhecimento de direitos e o cumprimento de deveres. O tratamento legal, respeitoso e digno, este sim é uma meta possível, ao alcance do Estado e das demais instituições sociais. É nele que devemos nos concentrar. A comunidade LGBT não precisa da acusação extra de exigir até o amor dos seus detratores.
Quanto à questão histórica, é verdade que o slogan da Parada não é criação nem propriedade exclusiva do cristianismo, mas análises da história comparada das religiões, por mais elogios que possam merecer, são absolutamente irrelevantes. A Parada é um evento de visibilidade mundial que, como tantas outras ações do terceiro setor, tem um notório papel de "relações públicas" do movimento LGBT. Quando o público recebe a frase "amai-vos uns aos outros", não há dúvida que essa mensagem tem o nome, endereço, gosto e sabor de cristianismo.
É preciso lembrar que, quando se trata de comunicação, percepção é realidade. Se uma fração apreciável da sociedade percebe o slogan como tendo identidade cristã, então, com ou sem a aprovação de historiadores, sociólogos, antropólogos e bem-letrados, e independentemente das melhores intenções dos organizadores da Parada, é a identidade cristã que se estará promovendo.
A cruz, por exemplo é um símbolo presente em muitas tradições e possui diversos significados, mas aqui no ocidente a visão desse símbolo evoca o cristianismo de maneira automática em praticamente todas as pessoas. Poucos terão o conhecimento ou o descondicionamento para associá-la a qualquer outra coisa.
Da mesma maneira, se pedirmos para algumas dezenas de pessoas completarem a frase "amai-vos uns aos outros", alguém tem dúvidas de que a grande maioria prosseguirá com "assim como eu vos amei", remetendo diretamente ao núcleo da doutrina cristã em uma frase atribuída ao seu principal personagem? Em suma, a correta análise da criação e uso de frases e símbolos em nada altera sua mensagem predominante. E no caso da frase escolhida pela Parada, esse predomínio é esmagador no sentido de remeter a um conteúdo eminentemente religioso.
Ainda que "amai-vos uns aos outros" fosse um princípio religioso universal (o que não é; Neto aponta exemplos em outras religiões do "tratai aos outros como deseja ser tratado", o que é muito diferente do amor universal recíproco), de que maneira isso contemplaria as pessoas que não seguem tradições religiosas? Aqui não posso deixar de fazer uma crítica forte à posição do diácono. Seu texto se intitula "Amor ao próximo: princípio cristão ou humano?", deixando entrever que seu universo de humanos se restringe às pessoas com religião, já que ele iguala a alegada universalidade religiosa do "amai-vos uns aos outros" à universalidade humana.
Caro diácono: as pessoas sem religião também existem, e, pasme, também são humanas! Ainda que se conseguisse provar que uma ideia está presente em todas as tradições religiosas, o que está longe de ser feito, isso nada nos diria sobre a totalidade dos seres humanos. Lamentavelmente, assim como acontece com os homossexuais, as pessoas sem religião e em particular os ateus também são vítimas invisibilidade e até da atitude de negação de nossa existência por parte dos religiosos, apesar de representarmos cerca de 10% da população mundial, e 8% no Brasil. E isso nos leva a outra crítica importante à frase escolhida para a Parada deste ano.
Concordo que existe um certo "sabor de vitória" em tentar vencer nossos detratores com as mesmas armas que usam para nos atacar - o que parece uma leitura inevitável do slogan da Parada. Se usam a religião e o cristianismo para justificar a homofobia, a lógica é usar a religião e o cristianismo para atacar a homofobia. Querendo ou não, o que o slogan faz é apontar o que seria uma contradição no comportamento homofóbico de raiz religiosa. No plano do debate puro, isso funciona com perfeição. No mundo real, só complica as coisas.
Que fique bem claro: não tenho absolutamente nada contra fazer críticas bem informadas à religião. As ideias religiosas influem em nosso trabalho, nosso lazer, nossos relacionamentos amorosos, nossos ideais, em como gastamos nosso dinheiro, como vemos o universo. Se existem problemas com a religião, eles devem ser denunciados sem meias-palavras.
Mas é fato notório que os fieis, assim como os apaixonados, são quase sempre imunes à razão. Por isso, quando se trata de religião, mesmo os melhores argumentos não convencerão ninguém a mudar suas interpretações teológicas, assim como não convencerão ninguém a se apaixonar ou se desapaixonar.
Como em todo bom jogo de xadrez, é preciso prever o próximo movimento do adversário. Quando uma entidade LGBT faz uma crítica religiosa, o que acontecerá é que os religiosos homofóbicos, mui felizes e contentes, correrão para suas bíblias para dizer por que o argumento do "amai-vos uns aos outros" não se aplica ao caso - por exemplo, lançando o velho golpe do "mas nós amamos os pecadores, só detestamos o pecado". E assim, em uma única linha, o preconceituoso não apenas se justifica como consegue a suprema vitória de arrastar uma associação civil e supostamente neutra em termos religiosos para as turvas águas da teologia e da exegese bíblica. A derrota é dupla.
O lema deste ano da Parada realmente não viola o Estado laico, mas fere o pressuposto de que as políticas públicas de Estados laicos devem se basear e princípios racionais abertos ao exame público e ao debate. Quando surge o debate do papel da comunidade LGBT na sociedade, queremos instar os cidadãos a buscar a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos do Homem para sustentar seus argumentos, não a abrirem suas bíblias em busca dos versículos mais apropriados!
A questão de fundo que a APOGLBT e outras associações precisam trazer à sociedade é que argumentos religiosos, sejam bons, maus ou péssimos, não podem jamais servir de base para orientar a sociedade inteira pela mão forçosa do Estado. Ainda que se conseguisse fechar questão em uma agenda de princípios religiosos "positivos", coincidentes com os direitos e a dignidade de todos os humanos (até os ateus), isso validaria os demais princípios religiosos por tabela, e uma rápida olhada na história, na teoria e na prática da fé deixa claro que o já foi (e é feito) em nome de princípios religiosos. Sairíamos da panela para cair no fogo.
* Daniel Sottomaior é engenheiro, criador da iniciativa Brasil para Todos (www.brasilparatodos.org) e presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (www.atea.org.br).
Em 2008, a iniciativa Brasil para Todos, que luta pela remoção de símbolos religiosos de repartições públicas, aliou-se à APOGLBT na promoção do tema daquele ano, que incluía o slogan "por um Estado laico de fato". Desde então, venho acompanhando outras iniciativas da comunidade LGBT, cujas organizações têm se firmado entre as vozes mais ativas na promoção da laicidade do Estado no cenário nacional.
Por isso causou estranheza o tema da Parada deste ano, que pede o fim da homofobia com a frase "amai-vos uns aos outros". Em artigo àCapa, Dario Neto aponta muito corretamente que essa escolha não viola a laicidade do Estado (pelo simples fato de que a APOGLBT não faz parte do Estado), e que a mensagem da Parada não é exclusivamente cristã. Quem afirmou em contrário equivocou-se. Mas entendo que há outras críticas importantes ao tema da Parada.
Para começar: alguém acha realmente que amor é coisa passível de recomendação? Por mais bem intencionado que seja o conselho, em alguma época ou lugar ele surtiu algum efeito? Ainda que a resposta fosse afirmativa, vamos agora legislar sobre os sentimentos? "Amai-vos uns aos outros" talvez faça efeito entre anjos e outros seres diáfanos e celestiais, mas aqui entre os mortais, parece apenas mostrar desconhecimento da natureza humana. Amar dezenas de pessoas já parece uma tarefa além das possibilidades humanas; amar milhões de desconhecidos é uma ideia de conto de fadas que não deveria ter lugar no chamado de uma importante organização social.
Amar a todos pode até ser um ideal cristão ou religioso, mas não é um ideal republicano. Esse é talvez o cerne da confusão da Parada. Buscar amor é um objetivo não apenas inalcançável, mas que nada tem a ver com o papel da APOGLBT, ou de qualquer outro grupo de defesa de direitos humanos. Essas instituições existem para exigir o reconhecimento de direitos e o cumprimento de deveres. O tratamento legal, respeitoso e digno, este sim é uma meta possível, ao alcance do Estado e das demais instituições sociais. É nele que devemos nos concentrar. A comunidade LGBT não precisa da acusação extra de exigir até o amor dos seus detratores.
Quanto à questão histórica, é verdade que o slogan da Parada não é criação nem propriedade exclusiva do cristianismo, mas análises da história comparada das religiões, por mais elogios que possam merecer, são absolutamente irrelevantes. A Parada é um evento de visibilidade mundial que, como tantas outras ações do terceiro setor, tem um notório papel de "relações públicas" do movimento LGBT. Quando o público recebe a frase "amai-vos uns aos outros", não há dúvida que essa mensagem tem o nome, endereço, gosto e sabor de cristianismo.
É preciso lembrar que, quando se trata de comunicação, percepção é realidade. Se uma fração apreciável da sociedade percebe o slogan como tendo identidade cristã, então, com ou sem a aprovação de historiadores, sociólogos, antropólogos e bem-letrados, e independentemente das melhores intenções dos organizadores da Parada, é a identidade cristã que se estará promovendo.
A cruz, por exemplo é um símbolo presente em muitas tradições e possui diversos significados, mas aqui no ocidente a visão desse símbolo evoca o cristianismo de maneira automática em praticamente todas as pessoas. Poucos terão o conhecimento ou o descondicionamento para associá-la a qualquer outra coisa.
Da mesma maneira, se pedirmos para algumas dezenas de pessoas completarem a frase "amai-vos uns aos outros", alguém tem dúvidas de que a grande maioria prosseguirá com "assim como eu vos amei", remetendo diretamente ao núcleo da doutrina cristã em uma frase atribuída ao seu principal personagem? Em suma, a correta análise da criação e uso de frases e símbolos em nada altera sua mensagem predominante. E no caso da frase escolhida pela Parada, esse predomínio é esmagador no sentido de remeter a um conteúdo eminentemente religioso.
Ainda que "amai-vos uns aos outros" fosse um princípio religioso universal (o que não é; Neto aponta exemplos em outras religiões do "tratai aos outros como deseja ser tratado", o que é muito diferente do amor universal recíproco), de que maneira isso contemplaria as pessoas que não seguem tradições religiosas? Aqui não posso deixar de fazer uma crítica forte à posição do diácono. Seu texto se intitula "Amor ao próximo: princípio cristão ou humano?", deixando entrever que seu universo de humanos se restringe às pessoas com religião, já que ele iguala a alegada universalidade religiosa do "amai-vos uns aos outros" à universalidade humana.
Caro diácono: as pessoas sem religião também existem, e, pasme, também são humanas! Ainda que se conseguisse provar que uma ideia está presente em todas as tradições religiosas, o que está longe de ser feito, isso nada nos diria sobre a totalidade dos seres humanos. Lamentavelmente, assim como acontece com os homossexuais, as pessoas sem religião e em particular os ateus também são vítimas invisibilidade e até da atitude de negação de nossa existência por parte dos religiosos, apesar de representarmos cerca de 10% da população mundial, e 8% no Brasil. E isso nos leva a outra crítica importante à frase escolhida para a Parada deste ano.
Concordo que existe um certo "sabor de vitória" em tentar vencer nossos detratores com as mesmas armas que usam para nos atacar - o que parece uma leitura inevitável do slogan da Parada. Se usam a religião e o cristianismo para justificar a homofobia, a lógica é usar a religião e o cristianismo para atacar a homofobia. Querendo ou não, o que o slogan faz é apontar o que seria uma contradição no comportamento homofóbico de raiz religiosa. No plano do debate puro, isso funciona com perfeição. No mundo real, só complica as coisas.
Que fique bem claro: não tenho absolutamente nada contra fazer críticas bem informadas à religião. As ideias religiosas influem em nosso trabalho, nosso lazer, nossos relacionamentos amorosos, nossos ideais, em como gastamos nosso dinheiro, como vemos o universo. Se existem problemas com a religião, eles devem ser denunciados sem meias-palavras.
Mas é fato notório que os fieis, assim como os apaixonados, são quase sempre imunes à razão. Por isso, quando se trata de religião, mesmo os melhores argumentos não convencerão ninguém a mudar suas interpretações teológicas, assim como não convencerão ninguém a se apaixonar ou se desapaixonar.
Como em todo bom jogo de xadrez, é preciso prever o próximo movimento do adversário. Quando uma entidade LGBT faz uma crítica religiosa, o que acontecerá é que os religiosos homofóbicos, mui felizes e contentes, correrão para suas bíblias para dizer por que o argumento do "amai-vos uns aos outros" não se aplica ao caso - por exemplo, lançando o velho golpe do "mas nós amamos os pecadores, só detestamos o pecado". E assim, em uma única linha, o preconceituoso não apenas se justifica como consegue a suprema vitória de arrastar uma associação civil e supostamente neutra em termos religiosos para as turvas águas da teologia e da exegese bíblica. A derrota é dupla.
O lema deste ano da Parada realmente não viola o Estado laico, mas fere o pressuposto de que as políticas públicas de Estados laicos devem se basear e princípios racionais abertos ao exame público e ao debate. Quando surge o debate do papel da comunidade LGBT na sociedade, queremos instar os cidadãos a buscar a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos do Homem para sustentar seus argumentos, não a abrirem suas bíblias em busca dos versículos mais apropriados!
A questão de fundo que a APOGLBT e outras associações precisam trazer à sociedade é que argumentos religiosos, sejam bons, maus ou péssimos, não podem jamais servir de base para orientar a sociedade inteira pela mão forçosa do Estado. Ainda que se conseguisse fechar questão em uma agenda de princípios religiosos "positivos", coincidentes com os direitos e a dignidade de todos os humanos (até os ateus), isso validaria os demais princípios religiosos por tabela, e uma rápida olhada na história, na teoria e na prática da fé deixa claro que o já foi (e é feito) em nome de princípios religiosos. Sairíamos da panela para cair no fogo.
* Daniel Sottomaior é engenheiro, criador da iniciativa Brasil para Todos (www.brasilparatodos.org) e presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (www.atea.org.br).
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